De menino trocado por égua a lenda da noite LGBTQ+ carioca: conheça a história de Madame Satã
Nascido no interior de Pernambuco em 1900, João Francisco dos Santos foi alvo de uma das decisões mais cruéis de sua infância: trocado por uma égua pela própria mãe, Firmina Teresa, que enfrentava extrema pobreza após a morte do marido. O menino, que viria a se tornar um dos maiores ícones da boemia e resistência LGBTQIAPN+ no Brasil, foi entregue a um negociante de cavalos chamado Laureano, sob a promessa de casa e estudo — promessa essa que nunca se concretizou. Em vez disso, João foi submetido ao trabalho escravo numa fazenda até conhecer Dona Felicidade, que o ajudou a fugir e o levou ao Rio de Janeiro em 1908.
Já na capital fluminense, o garoto passou a trabalhar na pensão de Dona Felicidade, mas logo fugiu e se estabeleceu nas ruas da Lapa em 1913, onde sobreviveu cometendo pequenos furtos e enfrentando a repressão policial. Com o tempo, João começou a vender panelas nas ruas e, mais tarde, se tornou garçom e cozinheiro em casas de tolerância. Em 1922, foi impactado pela trupe francesa Ba-ta-clan, e o sonho de ser artista nasceu com força. A convivência com transformistas e artistas da época, como Sara Nobre, o aproximou ainda mais do universo teatral, reforçando sua veia performática.
O ápice de sua transformação ocorreu em 1938, quando participou de um famoso concurso de fantasias no baile de carnaval do bloco Caçadores de Veados, no Teatro República. Vestido como um morcego inspirado na fauna nordestina, venceu a competição e atraiu a atenção das autoridades poucos dias depois ao ser preso com amigos no Passeio Público. Ao se recusar a revelar o nome verdadeiro à polícia, foi identificado por um delegado que o reconheceu do concurso e, inspirado no filme “Madam Satan”, o apelidou de Madame Satã. Inicialmente relutante, João acabou adotando o nome e se transformou em lenda viva.
Madame Satã morreu em 1976, vítima de um câncer no pulmão, e foi sepultado na Ilha Grande, onde viveu seus últimos anos. Ainda assim, seu legado permanece pulsante na história da resistência LGBTQIAPN+ no Brasil. Sua trajetória inspirou livros, crônicas, artigos e o filme “Madame Satã”, protagonizado por Lázaro Ramos. De criança trocada por uma égua a símbolo da liberdade marginal e do orgulho LGBTQIAPN+, Madame Satã é, até hoje, uma das figuras mais emblemáticas da cultura brasileira.